quinta-feira, 19 de maio de 2011

Hunlha - À prova de bala



Lembro da visão dela quando saí correndo da parada. Gritei para que todos se abaixassem, mas muito estavam com fones de ouvidos. Ipods, celulares, mp3 players, consolos modernos que nos impedem de praticar assassinatos em massa. Taí, um dia ainda proponho isso pro governo.

Apesar de ter ficado preocupado, não acreditava que elas realmente fossem tão fundo atrás de mim. Recebi o chamado e executei minha missão na hora do almoço, mas talvez aquela não fosse apenas mais uma delas, com uma função medíocre. Sorte... ou azar. Pois não esperava pela perseguição, não esperava que tivesse que passar por uma parada de ônibus às 12h35min, chapada de gente. Tive tempo de dar um empurrão nela, mas não adiantou, a bala que veio acertou a garota. Acertou e atravessou. Não tive tempo de parar pra reparar nisso, continuei correndo, mas quando escutei o oco de corpo caindo no chão, sabia que tinha sido ela. Corri até que achei um lugar seguro e, no fundo, sabia que a caçada havia acabado com aquela bala que finalmente encontrara seu alvo. Elas não podiam chamar tanta atenção.

Voltei pro trabalho suado. “Essa cidade tá um inferno e essa engarrafamento de merda! Não se pode mais nem ir almoçar e descansar um pouco”, comentei na subida do elevador com alguns amigos. Depois do expediente, procurei o endereço do hospital nos sites de notícias e fui atrás da garotinha. O estado dela era grave. Com certeza não me deixariam entrar. Tive que usar meus recursos de caçador. Finalmente tive acesso à sala onde ela estava internada. Sentei lá e peguei na sua mãozinha, só um pouco menor que a minha. Ela abriu os olhos e virou a cabeça. Não lembrava mais a menina que empurrei na parada. Parecia que tinha sido toda maquiada pra parecer um cadáver. Mas não era só maquiagem.

Os olhos estavam cheios de medo. Mas ao mesmo tempo parecia me fazer mil perguntas. Resolvi quebrar o silêncio. “O que os médicos disseram?”

“A bala perfurou o meu pulmão”, disse com uma voz chorosa. “Foi grave, eles não têm muitas esperanças”, completou com a voz aguada, quase muda de lágrimas. “Não sei o que aconteceu, foi muito rápido, só dói tanto...”, de repente a menina, que talvez pudesse me odiar, estava ali, se abrindo...

Senti um pouco de inveja dela. Prostrada em uma cama com um quadro terminal. Não que eu tivesse vontade de morrer. Mas ninguém gosta de sentir dor... Pedi permissão para acender um cigarro, ela não respondeu, só fez como se não se importasse. O que é uma fumacinha pra quem tá fudido, né? Dei uma tragada e peguei na mão dela novamente.

“Sabe, não sei o seu nome, mas com certeza você é uma pessoa abençoada, mesmo que eu não acredite em Deus”. Ela me olhou com olhos incrédulos.

Fui desabotoando os botões da minha camisa xadrez e levantei a blusa branca por baixo. Dava apenas para ver uma mancha preta no peito. “Essa foi a minha primeira bala. Não atravessou, apenas ficou aí. Fiquei dias no hospital, enquanto os médicos tentavam me curar. Sem sucesso. Estou vivo, mas ela permanece aí. Há dias em que realmente desejava ter morrido naquele mesmo dia, que fosse uma bala fatal... A ferida foi grave, mas, por uma grande piada de mau gosto, sobrevivi. E a minha missão passou a ser caminhar com o peito ferido, latejando, e a suportar todos os segundos, todos os tic-tacs, sem saber qual é o objetivo disso...”

Dei uma tragada imensa no cigarro e demorei para colocar a fumaça pra fora. A garota pegou minha mão e deu um aperto fraquinho. Num impulso levantei a mão e enxuguei uma lágrima solitária que tinha parado já no fimzinho do seu nariz. Ela sorriu.

“Obrigada”, disse e dormiu. Acho que dormiu. Essa sortuda.

Abotoei a camisa e escondi a minha ferida. Me senti meio mulherzinha. “Mas que diabos, sair por aí me lamentando”. Olhei-a uma última vez. Parecia um anjinho só que com os lábios pálidos e a pele seca. Senti uma pontada no peito e tive que me encostar na janela pra retomar a minha consciência. Era hora de ir... para todos os lugares, ou para nenhum. Apenas vagar com dor e tentar fazer algum bem para tantos merdas que existiam por aí. O que seria do mundo sem esses merdas, né minha pequena?

terça-feira, 17 de maio de 2011

Acabrunhada



“Fechei a porta de casa, enfiei a chave de qualquer jeito no bolso mais fundo e até pude sentir uns fiapos no fundo (talvez um buraco!). Comecei meu caminho, tentando me lembrar a cada passo qual era meu real destino. Estava meio escuro, mas não tinha certeza se era noite lá fora ou só no meu coração.

A cada pensamento ou mesmo a cada vez que o nome dele aparecia em alguma bruma imaginária na minha mente, a gastrite dava sinais de vida. Na boca, uma mistura de suco gástrico e saliva dele, em eterno refluxo, para amargar ainda mais a saga. Desci do ônibus com medo das conseqüências, pois minha barriga embrulhava a cada jura de amor lembrada.

Andei sem rumo, até me perceber perto de um mangue poluído. Não sei se o que percebi primeiro foi a lama ou o odor que me bateu. Não deu para segurar a ânsia. A mistura de lama batizada de excrementos e esgoto quase me fez vomitar as vísceras. Mas o que saiu foi uma poção dos nossos beijos, perdidos em uma água amarelada. Vomitei o que parecia décadas, mas talvez fossem apenas os nossos seis meses de namoro.

Quando finalmente cessou, continuei no caminho, meio cambaleante, pois não conseguiria parar se continuasse sentindo o bafo quente dele no meio daquela “lixama”. Abaixei a cabeça e prossegui assim. Não pretendia encarar nenhuma face, olhar nenhum céu, nenhuma estrela, nenhuma luz... Foi quando ela me apareceu. Redonda e luminosa. Enquanto dava uma passada mais larga que a outra, continuava olhando pro chão, para ver se ela ainda estava ali. E no meio das folhagens e da lama, ela iluminava parcamente a calçada. Achei irônico, mas no fundo foi um sinal preu vir parar aqui. Naquela noite, eu olhei a lua no chão”, terminei envergonhada e só tive coragem de dar uma olhada em volta quando escutei uma fungada ao meu lado direito.

Aplausos.

- Bem gente, depois desse relato, acho que a gente só pode dar as boas vindas pra nossa nova companheira. Vamos encerrar por aqui, mas lembrem-se do nosso lema “Sempre há tempo para amar”.

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