terça-feira, 8 de setembro de 2015

A cãibra que nunca virou história


Toda vez que ouço ou leio alguém falar em lembranças que reaparecem, sem nenhuma convocação, no vácuo dos pensamentos, um frio me percorre a barriga e minhas sobrancelhas se franzem. Há tempos tento me livrar disso. Há tempos tento esconder que minhas lembranças tem nome próprio. Seu nome.

Hesitei em te registrar em qualquer um dos meus escritos para não te dar esse gosto. O gosto de saber que me marcou e marca. O gosto de ter alguma razão sobre os temas que me fazem escrever. Vai escrever sobre a nossa trepada, vai?

Vou. E enquanto encaro as palavras e penso em nossos gemidos, tremores e respirações ofegantes, decido que é preciso ser justa. É preciso dar o crédito dessa estória que foi ideia tua. E congelar o momento em que finalmente não há dúvida quanto a dor e o prazer, o momento em que o clímax não é nada que jorra de dentro de ti. As pernas tremem, mas não é um tremor passageiro. Os dedos de um dos pés se contorcem e parecem se enrijecer em uma ordem errada. Em instantes, a sensação toma conta de toda a perna e forma caretas de dor no teu rosto.

Fico tentando pensar em formas de transformar tua cãibra em metáfora. Mas sempre me pego achando que é uma empreitada inútil. Porque a cãibra sempre foi uma dor só tua. Para mim, foi um contratempo. Espero ela passar para podermos continuar. E não há nada nessa espera que me faça vacilar, que me faça duvidar, que me faça querer menos. Te acho encantador até quando te acidentas. E fico segurando a vontade de rir e de transbordar. 

Mas talvez a cãibra seja, sim, uma metáfora ou um ícone de algo. De uma certa fragilidade que se revela. Não penso nisso no momento. Não penso, na verdade. Sou toda empatia por aquela dor que tantas vezes tentou me abater nos segundos que antecediam o gozo. (É possível que seja por isso que essa não seja uma dor que me repugna e, pelo contrário, quase me agrada). Mas, de alguma forma, essa imagem se fixa naquele momento. Vou virar historinha pro blog?

Nego com a cabeça. Claro que não. Me sinto ofendida. Claro que não! E, hoje, tempos depois, me prostro humilhada diante de uma tela para finalmente assumir minha derrota. Você virou história, querido. E eu nem pude escolher o tipo. Está aqui: eu me rendo por escrito. Pois prefiro você, seu sexo, sua presença e mesmo sua cãibra aqui, que no espaço volumoso que vêm ocupando na minha cabeça.



terça-feira, 1 de setembro de 2015

Nordestinah (Leituras de Agosto: parte 2)



Das leituras a que me propus para agosto, faltava comentar apenas a do livro Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Todos que me recomendaram esse livro foram unânimes em afirmar que o livro era ótimo e que a leitura era uma delícia. Não se propunha a ser um livro difícil, nem um tratado sobre racismo ou feminismo, mas um livro de ficção com direito a romance-romântico e tudo. No entanto, não quero falar sobre isso. Enquanto lia o livro, ia apenas mergulhando em uma rede de divagações _novas ou já velhas conhecidas_ à medida em que ia aceitando o jogo da personagem Ifemelu de tirar as situações da sua condição de familiaridade e lançar um olhar de estranhamento sobre elas.

Seu outono da semisegueira tinha começado, o outono das perplexidades, das experiências que teve sabendo que havia camadas escorregadias de significado que lhe escapavam.

Nordestinah...


Tenho algum receio de que alguém possa achar que minha intenção é insinuar qualquer comparação entre o racismo e a xenofobia. Não é. Mas esse exercício de lançar um olhar de estranhamento para o cotidiano, durante a minha leitura, fez com que eu me pegasse muitas vezes me identificando com algumas situações de desconhecimento ou surpresa que a personagem _que vou descrever como negra nigeriana nos EUA_ viveu. Cheguei a comentar com amigos sobre algo que, atualmente, já quase passava despercebido para mim: a diferença de hospitalidade

Quando Ifemelu chega aos EUA, espera encontrar uma tia saudosa e uma recepção calorosa, mas encontra uma tia mal-humorada e um tanto chateada por ter tido que ir buscá-la no aeroporto. A primeira vez que vim para São Paulo, vim sozinha, para fazer uma prova. Um amigo da minha mãe ia me hospedar em sua casa, mas devido ao horário de chegada do meu voo, ele não poderia me buscar no aeroporto. Assim, me passou o endereço para que eu pegasse um táxi. Claro que não falei para ninguém, mas a perspectiva de chegar em uma cidade desconhecida, não ter ninguém me esperando e de ter que procurar por um endereço sozinha, me aterrorizava. Mas a instrução para pegar o táxi tinha sido passada com tanta naturalidade, que acreditei que não haveria nenhum problema. Desde então, todas as outras vezes em que vim para São Paulo, sempre fui do aeroporto para o meu destino sozinha, mesmo quando estava hospedada na casa de amigos que tinham carro e poderiam ter ido me buscar. Mas por que eu daria esse trabalho aos meus amigos? Não acho que aqui as pessoas sejam mais insensíveis, mas tem algo da vida em São Paulo, ou em metrópoles, que faz você achar que não faz sentido incomodar alguém desnecessariamente. Mas, em São Luís, nunca pareceu desnecessário ir buscar e deixar os amigos no aeroporto. Lembro que quando uma amiga estava indo fazer uma viagem para a África do Sul, cheguei a perguntar se ela queria carona e ela me avisou que outra amiga tinha pedido para levá-la. PEDIDO! Nos meus primeiros dias em São Paulo, lembro que meu maior contato era o meu melhor amigo, que já morava aqui há um semestre, e que muitas vezes me vi um pouco ressentida por ele não me acompanhar ao ponto de ônibus às 22h. Talvez ele só descubra que senti isso ao ler esse texto, pois nem sempre verbalizava devido a essa consciência de que meus hábitos não faziam tanto sentido lógico nesse novo espaço.

No livro, Ifemelu relembra um dia em que suas colegas de apartamento a convidaram para jantar, mas, ao final do jantar, elas pegaram a calculadora e começaram a dividir a parcela que cada uma deveria pagar. Tenho 26 anos e, só muito recentemente, alguns amigos começaram a entrar na categoria “bem-sucedidos”, então, não me espanta tanto essa prática entre pessoas da minha idade. Mas, ainda assim, se alguém te falasse “vamos comer uma pizza?”, em São Luís, em geral ela estava dizendo que ia pagar pela pizza.

Não falo aqui de nenhum ressentimento. Somente disso: de como os sentidos se deslocam sutilmente sem que, no caso do Brasil, precisemos mudar de país.


E mulher, branca, classe média, acadêmica


Eu não poderia falar de Americanah como se fosse só um livro que fala de um estranhamento de estrangeiro em outro país. Talvez não tenha me surpreendido tanto com algumas coisas porque estou em um meio em que o racismo não é negado (inclusive é sempre bom exemplificar) e por ter tido contato com pessoas que estudavam isso e compartilhavam algumas reflexões. Mas o livro parece ser perfeito para o nosso tempo por ter muito a cara da internet _na qual eu navego, pelo menos. As minhas redes sociais estavam descritas ali: a crescente individualização da representação e a multiplicidade de opressões

Não posso, por exemplo, contar uma história de opressão direta que tenha vivido em São Paulo por ser nordestina _como alguns amigos e professores poderiam_ em grande parte, por ser branca, classe média e estudar em uma universidade pública (fiquei em dúvida se deveria escrever meu gênero aqui). Talvez por isso, ninguém tenha me acusado algum dia de ter deixado o Nordeste para vir “roubar” o emprego de alguém. E, aqui, não estou querendo ser dramática _ou vou ser acusada de vitimização ou xenofobia reversa! 

Talvez o meu pior momento de nordestina-em-São-Paulo tenha ocorrido quando peguei um ônibus na USP e o moço que estava sentado ao meu lado, conversando com o motorista, defendia em voz alta que deveriam proibir os nordestinos de entrar em São Paulo. Com certeza, ele não suspeitava que a garota branca, estudante da USP, sentada ao lado era nordestina (porque ainda tem gente que acha que existe um estereótipo “nordestino” sem levar em consideração que é uma região com nove estados!), e, olhando em retrospectivo, não acho que foi grave em grande parte devido ao absurdo da ideia do rapaz, mas, na hora, me levantei e mudei de lugar porque fiquei, sim, com medo.

Apesar de ter feito os melhores amigos possíveis nessa nova cidade, acho que nunca deixei de ter consciência de que existe uma diferença. Às vezes, eu esquecia, até alguém novo se aproximar e perguntar da onde era o meu sotaque. Não acho a pergunta ofensiva, ela apenas sempre me lembra da diferença. E, talvez nunca tenha confessado isso para ninguém, mas quando estou no Sudeste/Sul, sempre me pergunto se o meu sotaque interfere, de alguma forma, na recepção da minha fala. Quando comecei a fazer entrevistas de emprego, sempre me perguntei se o meu sotaque seria um impasse. Honestamente, não sei se é e, pelas experiências que já tive aqui, tendo a achar que não. Mas acho que o próprio fato de eu me perguntar se o meu sotaque é um problema, já é sintoma de algo.

(Continua)
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