Tudo o que eu havia pedido era uma boa pauta. Meu
melhor amigo havia me convencido a manifestar meu descontentamento. Fazia seis
meses em que eu só cobria a editoria de Cidade. Sabem o que isso significa?
Então perguntem a qualquer jornalista: buracos, chuvas, buracos, trânsito e
confirmar dados dos incontáveis releases da prefeitura. Nada nem remotamente
interessante, nada onde eu pudesse explorar meu vasto currículo de oficinas
literárias e minicursos de New Journalism. O que Talese ou Tom Wolfe teriam feito
se trabalhassem em um jornal diário do interior do Brasil?
- Eles teriam lutado por pautas mais interessantes.
– foi a singela resposta do meu melhor amigo.
Não custava tentar, certo? Errado. Depois de ouvir
meu discurso ensaiado sobre novos rumos para a narrativa jornalística e
matérias que poderiam se aproximar da realidade do leitor ou relatar
experiências novas e reais, tudo o que o editor disse foi que ia pensar. Mas
até aí tudo bem! O que eu não imaginava era que hoje ele chegaria com uma notinha
de uma revista.
Bordel
Literário
Inspirado
pelo sucesso de 50 tons de cinza e pelo novo fôlego que o ramo dos livros
eróticos está experimentando, o renomado empresário Dionisio Batista, que
comanda as aclamadas casas noturnas The Weekend e Sex.y, inaugura nesta
quarta-feira, 23, um empreendimento mais que especial. A Academia Sexual de
Letras (ASL) oferecerá um cardápio de famosas cenas literárias de sexo para a
experimentação do cliente. Romances consagrados como Lolita, História do Olho e
120 dias de Sodoma estão entre as opções, assim como poesias que podem ser
escolhidas por temas: peitos, ninfetas, sexo anal, menstruação, entre outros.
Dionisio garante que todo o material oferecido foi selecionado por curadores
especializados e as performances foram cuidadosamente pensadas para arrebatar
sexual e esteticamente o leitor.
Quando terminei de ler ainda não imaginava o que
viria a seguir. Mas é óbvio que ele queria que eu bancasse a personagem do
seriado Girls – que usa cocaína para
escrever sobre usar cocaína – e fosse lá experimentar o tal do Bordel
Literário. Devo ter deixado minha empolgação transparecer, pois logo em seguida
ele sugeriu que eu poderia escrever uma pauta à minha escolha, caso conseguisse
fazer um bom trabalho.
E agora estava ali. Terminando de fazer essas
anotações enquanto não chegava à estação de metrô. A sessão estava agendada.
Trezentos reais por hora. Tudo pago pelo jornal, claro. Porque jornalista não
ganha para desperdiçar tudo isso em uma mulher pelada declamando poesia. Eu imaginava
que seria isso. Uma porção de puta letrada, fazendo valer o ensino superior e,
claro, gerando mais lucro para empresários que apostam em qualquer coisa para
ganhar dinheiro suficiente para comprar aquele país de terceiro mundo que não
para de ser anunciado na TV.
Mas, tudo bem, eu sabia que devia abrir a minha
cabeça se quisesse escrever alguma coisa minimamente publicável. Já tinha lido
outras matérias sobre a Academia, mas ainda não tinha me decidido sobre que
material escolheria. Queria algo que me permitisse observar mais e participar
de menos. Os sados e escatológicos estavam fora de cogitação. Talvez uma poesia
fosse mais interessante...
A moça da recepção perguntou se eu precisava de
ajuda depois que passei pelo menos meia hora folheando o cardápio. Eu disse que
queria experimentar algo novo. Uma poesia. Mas, no entanto, não conhecia nada
de poesia. Ela fez meia dúzia de perguntas sobre o nível de vocabulário que eu
gostaria, o estilo, se tinha preferência por alguma escola ou tema. Por fim, ela
me fitou longamente por trás dos óculos de nerd e me sugeriu a Hilda Hilst.
Tinha minhas dúvidas quanto à escolha, mas aceitei, pois assim analisaria a
experiência dos funcionários da Academia do início ao fim.
A moça que se apresentou na recepção para me
acompanhar até ao meu quarto me surpreendeu um pouco. Eu esperava o clichê dos
clichês, confesso. Uma gostosa siliconada vestindo uma roupa de intelectual
piranha. A moça que me apareceu devia ter em torno de 23 anos e tinha o corpo
bem desenhado, na verdade. Mas estava completamente fora do meu imaginário de
puta. Aquela menina ali era exatamente o tipo que eu pegaria em um dia de muita
sorte no Bar Canal. A perspectiva me animou e me assustou um pouco. Tentei
decorar o rosto dela para verificar se não a encontraria por lá em outros
finais de semana.
Ela me acompanhou até o quarto sem nenhum movimento
especial. Não segurou a minha mão e não proferiu uma palavra. Quando entramos
no local, reparei que não se parecia com o quarto de um motel. Lembrava o quarto
de um estudante. Uma cama de solteiro simples e com cara de gasta. Roupa de
cama azul escura com motivos xadrez. Um pequeno guarda-roupa, uma escrivaninha
com alguns livros jogados e uma janela fechada. Dentro do quarto havia outra
porta que, segundo imaginei, devia levar a um banheiro. Logo que fechei a porta
do quarto, minha parceira começou a me beijar e a tirar a sua roupa. Parecia
muito com um encontro casual qualquer. Entrei no clima fácil apesar de ter tido
muita vontade de perguntar quando ela começaria a declamar a minha poesia.
Depois de um tempo, esqueci a poesia, a Academia e a pauta. Fizemos amor! E
tudo havia sido tão natural e tão... certo. Eu e...
- Qual o teu nome? – lembrei-me de perguntar quando
já descansávamos, abraçados, para dividir bem o espaço da cama de solteiro.
- E por que haverias de querer minha alma na tua
cama? – ela rebateu olhando profundamente nos meus olhos.
Fiquei mudo, enquanto a pergunta martelava na minha
mente. Como eu nada respondia, ela continuou:
- Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Minha acompanhante se levantou da cama e começou a
recolher suas roupas pelo quarto enquanto ia recolocando-as.
Eu permanecia calado. Até que ela, já completamente
vestida, acrescentou:
- Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me. – Disse me olhando
com olhos provocadores, antes de abrir a porta e desaparecer pelo corredor.
Eu, estarrecido, entorpecido, arrebatado e vazio,
com lágrimas nos olhos repetia a pergunta na minha cabeça:
“E por que tu haverias de querer minha alma na tua
cama, amada Hilda?”.
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